27.12.07

PODIA TER ACONTECIDO EM MALCATA...

Presépio na igreja de Malcata(2006)


ERA UMA VEZ... UMA HISTÓRIA VERDADEIRA!..












O frio começava a apertar, caíam as primeiras neves, e na igreja a miudagem dava os últimos retoques na afinação das canções para o Dia de Natal. Por essa altura, chegava invariavelmente à aldeia uma tribo cigana, família larga de muita gente, avós, pais, netos de várias idades, carroças e burros e o inevitável acampamento num pinhal não longe da minha casa. Mesmo perante a
hostilidade geral, que se dizia que os ciganos roubavam, insistiam em passar aí os Natais, vá lá saber-se porquê!...
Nesse ano, os ciganitos traziam um carrito daqueles que se compunham de uma caixa de sardinha ou uma tábua em cima de dois eixos com rodas, e que era usado para os miúdos brincar aos automóveis, descendo ladeiras a velocidades estonteantes. Mas desta vez era um carro de luxo, com rodas pequeninas de aço, que deslizavam como uma pena e um guiador que agora se diria topo de gama. Contei lá em casa e logo me disseram que tinha sido certamente roubado. Ripostei que não: eles tinham-me dito que foi o avô que o fez!...
Havia um caminho bastante inclinado, ao lado da minha casa, onde se juntavam para brincar. A troco de uns bons pedaços de pão, eu era o único elemento estranho a poder utilizar o bólide, embora espaçadamente, que eles exerciam ostensivamente o seu poder soberano e punham-me no meu sítio. Andava, mas quando lhes desse na real gana!... Claro que toda a gente que passava reprovava a minha participação: um menino tão limpinho e filho da senhora professora metido com os ciganos!...E logo iam pressurosos, a avisar!...
Logo pela manhã, foi um alvoroço na minha casa, um altear de vozes que eu não percebia, correrias, um sobressalto. Como ninguém atendesse a minha curiosidade, levantei-me cedo da cama, para ver o que era. Deparei então com toda a gente da família e pessoal de fora, no curral, à volta de um enorme porco, que se contorcia com dores, levantando o focinho em assustadores espasmos. Discutia-se se se havia de chamar o ferrador, que tudo sabia de doenças dos animais, ou o veterinário. A maioria preferia o ferrador, mas o meu pai resolveu mandar alguém ao telefone público, havia um na terra, chamar o veterinário. Mas este tardava em chegar e as contorções dolorosas do bicho metiam cada vez mais dó. Nas circunstâncias, o meu Pai tomou a decisão de matar o animal, encarregando-se ele próprio da função, nos mesmos moldes da matança tradicional, uma faca enterrada no pescoço, direita ao coração. Chegado entretanto o veterinário e inteirado do estado das coisas, mandou abrir o bicho. Rapidamente se verificou que o porco tinha engolido o arganel (uma armação de arame que era espetada no nariz, com dois bicos afiados, para não fossar), e que este lhe ficara cravado na garganta, causando-lhe as dores que podemos imaginar. Descoberta a causa, discutiu-se se a carne do falecido estaria em condições de ir para a salgadeira ou não. O veterinário achou que ele nem teria chegado a ganhar febre, pelo que deixava a opção aos donos. O que fez a discussão retornar ao ponto de partida. A maioria era pelo aproveitamento, mas a minha mãe declarou jamais comer tal pitéu, pelo que, ponderados os prós e os contras, foi decidido enterrar o porco. No chão nevado da quintarola, foi feito um buraco e o animal enterrado.
Olhando por cima do muro baixo da propriedade, que confinava com a estrada, os miúdos ciganos assistiram à operação, tendo logo contado aos pais. Pelo que, passado algum tempo, apresentaram-se dois ciganos pedindo para desenterrarem o porco, pois o aproveitariam para lhe tirar o sebo ou até para comer, se estivesse em condições. Levaram um rotundo não do meu pai, pois se não servia para nós, não servia para ciganos, o que eles imediatamente desmentiram com veemência. Era Natal e até poderiam dar alguma carne aos filhos. Se ela estivesse boa, claro!…
Perante a negativa, foram embora, mas voltaram e continuaram a insistir. Os miúdos rodearam-me e prometiam que me deixavam andar o que quisesse, se levassem o porco. Perante a fortíssima abordagem conjunta, minha e dos ciganos, o meu pai disse-me: diz a eles que não quero saber de nada, mas se, quando chegar da vila, vir algum buraco, chamo logo a polícia. Contei aos ciganos e estes aos pais que me disseram de imediato: a gente tapa logo e até põe neve por cima!...
Homens e mulheres vestidos de preto lá desenterraram o porco, taparam o buraco, arrastaram a neve, transportaram-no em braços até ao muro, puseram-no na carroça e abalaram felizes rumo às tendas, acompanhados por uma chusma de ciganitos.
Passados dois ou três dias, era Natal. Chegado a casa, depois da missa, ainda pude ver a caravana que desaparecia na curva da estrada. E, ao entrar no portão, o carrito que, sem me dizerem nada, me deixaram como prenda de Natal, gratos por uma consoada porventura mais farta. Não estava embrulhado em papel nem tinha laços, mas seria, na sua singeleza, a melhor prenda do Menino Jesus.
Tinham ficado felizes com o porco; quiseram deixar-me feliz com o carrito. Não saberiam bem o que era o Natal, mas, no seu íntimo, estavam em consonância com a mensagem do Menino Jesus, cujos bracitos se abrem para com todos compartilhar e a todos abraçar, independentemente do seu estado, raça ou religião!...O significado do Natal!...

in "4R-Quarta República" e postado por Pinho Cardão
Nota: Li esta história e imediatamente fui levado à minha infância. É bom ler textos como este.

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