11.6.09

HISTÓRIAS DE VILAR MAIOR (QUASE REAIS)



"Festa mesmo festa era a do Senhor dos Aflitos. Até poderia Deus não existir, mas o Senhor dos Aflitos existia da mesma forma que existia tudo o resto, pois, até sabíamos onde morava. Para as crianças eram os foguetes - e as canas, e o linhol e as bombas que não rebentavam; era a curta boleia na camioneta da música; era o desfile com a música pelas ruas; eram as amendoeiras, ladeando as ruas, que vendiam santinhas de comer e amêndoas doces; eram as cornetas e os balões; era o estrear de roupae as guloseimas feitas de arroz doce e pudim; era a incerteza daquele instante mágico da subida do balão; era o tocador de concertina que tinha como palco um carro de bois; era a luz eléctrica que o barulhento motor produzia. Por três dias a aldeia transformava-se em cidade, três dias no ano eram sonho real. Acabada a festa caía uma tristeza infinda que vagarosamente se ia diluindo até renascer de novo a esperança e a ansiedade crescente da nova festa. Tudo o que de bom havia tinha de se guardar para a festa: a melhor roupa, o melhor galo, o melhor borrego ... e os melhores melões para sobremesa, sempre de forma inconfundível, casca de carvalho. Só a lembrança faz crescer água na boca: Rugosa a casca, grande no tamanho, de cor verde por fora e laranja fogo por dentro, de cheiro intenso ... e de sabor divinal.
Dias antes da festa, o pai que nunca dava ordens directas, sentenciou à hora da ceia: - Os melões da horta, nesta altura, é preciso guardá-los, senão ainda os leva o diabo, no tempo em que o diabo as mais das vezes tinha figura de gente.
Quando o pai dizia “é preciso” não carecia de dizer quem tinha de o fazer e o Carlos soube que era quem ficaria de guardião pela noite, que de dia ninguém se atreveria. Claro que sem carava nem pensar e disse ao pai:
- O João vai comigo.
- Pois que vá. Levai uma facha de palha e umas mantas.
Sexta feira depois de uma ceia, comida à pressa ( e lá diz o ditado que quem se deita com fraca ceia toda a noite rabeia) um pega na palha, outro nas mantas e lá foram. Conversa para aqui, conversa para ali, deitados costas firmes no chão, olhos cravados em miríades de estrelas até deu para interrogações cosmológicas sobre se o número de estrelas era finito ou infinito cada um teimando para um dos termos, por necessidade dialéctica de prolongamento da conversa. Deitados ao lado do meloal, uma leve brisa trouxe-lhes o cheiro dos melões maduros que os trouxe à doce imaginação de se sentirem a saboreá-los. Às tantas, solta o João, de alcunha o mandongas por nunca se cansar de parecendo que havia de comer este mundo e o outro:
- Ah... bem que podíamos provar um melãozito ...
- Pois! Provas o melãozito e depois quem prova porrada sou eu! Sabes que o pai os tem contados.
Mas a tentação dançava lá dentro e quanto mais esforço para a afastar mais firmemente se impunha e ganhava terreno. E tal como Eva e Adão, resistir à tentação ficou completamente fora das suas forças.
- Mas… sabes… podíamos provar ali um dos do sr Raul. E levantam-se, passam à horta do lado e começam a apalpar um, e outro, e outro e todos pareciam verdes. Um deles puxa da navalha e abre um. Não presta. Abrem outro, não presta. E mais um e outro, outro ainda na ânsia de encontrarem um que lhes soubesse ... como quando são bons sabem.
Terminada a empreitada louca, sentiram-se como Adão e Eva depois de comerem o fruto proibido. Não iriam ser expulsos dum paraíso em que não viviam mas não se iam livrar do purgatório e de expiar duramente a falta cometida. Muito cedo, antes que o sol rompesse, puseram mantas às costas, cozidos de medo, a caminho de casa, e, ao avistarem o sr Raul que mal dormira a pensar nos melões, escondem-se atrás de um muro junto à ponte até o deixarem passar. Caminham apressadamente para casa e, à socapa, meteram-se na cama aguardando o já previsível desenrolar dos acontecimentos. E foi como se lhes caísse um raio quando ouviram a voz do sr Raul, do fundo das escadas:
- Ó sr João! ó sr João!
Ouviram a voz do pai a acudir. Tolhidos de medo nem foram capazes de seguir a conversa e apenas perceberam, a rematar a conversa, o pai dizer:
- Esteja o senhor descansado que não vai passar a festa sem melões!
Da porrada, (o pai batia poucas vezes ... mas quando batia...) nem queiram saber. Porém o difícil, foi no sábado da festa. E agora não dizia “é preciso”, mas, em voz firme e austera:
- Pegam no cesto maior, vão à horta, colhem os nossos melões e vão levá-los a casa do sr Raul.
No almoço do domingo de festa, à sobremesa, comeu-se o habitual arroz-doce. O pai disse às visitas que, infelizmente, este ano, os melões foram uma desgraça: uns não nasceram e os que nasceram deu-lhes o mal e não vingou nem um para a amostra. "
Júlio Marques
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